FÁBIO ZANINI
ENVIADO ESPECIAL A GONDER (ETIÓPIA)
Numa tarde recente no norte da Etiópia, 200 rostos ansiosos acompanhavam
uma lista de chamada pausadamente recitada por um homem de terno, numa
sinagoga de chão de terra, teto de zinco e bandeiras de Israel nas
paredes improvisadas.
Metade saiu de lá satisfeita. Acabavam de ser selecionados para uma
entrevista com o governo israelense, parte do longo processo para fazer
"aliyah", a imigração para o Estado judeu.
Para os demais, restou esperar mais, uma rotina que muitos já seguem há
tempos. "Felizmente, Deus me deu o dom da tolerância", diz Muluken
Azeze, 55, um ex-professor que há 20 anos espera para fazer a viagem.
Moradores da cidade de Gonder, todos são parte da mítica "tribo perdida
de Judá", descendentes de judeus que se desgarraram há 3.000 anos da
Terra Prometida.
Segundo a lenda, são de uma linhagem que remonta ao rei judeu Salomão e à rainha etíope Sabá.
Menelik, filho deles, teria migrado para a Etiópia para criar uma nova
Jerusalém, liderando o povo judeu e levando como amuleto a Arca dos Dez
Mandamentos.
Menos fantástica e com maior base histórica, a teoria mais aceita é que
os judeus chegaram à região há 2.500 anos, vindos do Egito, seguindo o
curso do rio Nilo até uma de suas nascentes, no Lago Tana, perto de
Gonder.
Seus ancestrais teriam fugido após a destruição do Primeiro Templo de Jerusalém pelos babilônios, em 587 A.C.
Seja como for, os "falash", como são conhecidos, formaram durante
séculos uma comunidade virtualmente isolada num país majoritariamente
cristão e com expressiva minoria muçulmana.
Tinham uma forma primitiva de seguir sua religião. Desconheciam o
Talmud, por exemplo, um dos documentos sagrados do judaísmo, nem tinham
rabinos. Também praticavam sacrifícios de animais, algo que já havia
caído em desuso em outras comunidades judaicas.
No século 20, após o estabelecimento de Israel, a comunidade, que chegou
a ter 100 mil pessoas, foi "redescoberta" e incentivada a imigrar, como
ocorreu com judeus de todo o mundo.
Mas foi nos anos 80 que começaram enormes operações com nomes como
Moisés, Josué e Salomão, para resgatar judeus da fome e das guerras
etíopes. Cerca de 30 mil foram levados por avião para Jerusalém, uma das
maiores operações de remoção da história. Outros 70 mil migraram por
conta própria.
CRISTÃOS
O assunto parecia encerrado, mas voltou à tona em 2010. O foco passou a
ser uma comunidade de cerca de 7.000 pessoas conhecidas como "falash
mura". Nada de novo, não fosse um ponto: eles nem judeus são.
Com a ajuda de um forte lobby nacionalista em Israel e apoio de judeus
endinheirados nos EUA, conseguiram convencer o governo de que seus
antepassados foram forçados a se converter para o cristianismo por
missionários ocidentais no século 19.
A tese é polêmica e provoca reação no país. "Cada onda de etíopes que
chega tem laços mais tênues com o judaísmo", diz Stephen Kaplan,
professor da Universidade Hebraica de Jerusalém que estuda o tema.
Nos últimos três anos, os "falash mura" vêm sendo levados para Israel em
voos de carreira ou charters, ao ritmo de 50 a 100 pessoas por mês.
Em Gonder, os últimos serão "resgatados" até o final do mês que vem.
A tarefa é coordenada por Asher Seyum, 43, etíope que escapou aos 12
anos da guerra cruzando a pé para o Sudão junto da família, no início
dos anos 80.
De lá, migrou para Israel, entrou para o serviço diplomático e retornou a
seu país de origem 29 anos depois, com mulher e dois filhos pequenos,
para encerrar o último capítulo do que vê como uma missão de três
milênios: a reunião do povo judaico.
"Estamos encerrando um capítulo histórico. Imagine o que isso significa para mim, um ex-refugiado", diz.
Formalmente seu título é diretor da Agência Judaica de Israel. Mas a
função é bem maior do que o título burocrático sugere: é ele o portador
de boas notícias para os que vão e o encarregado de novamente pedir
paciência aos que ainda ficam.
Muitos jamais mudarão para Israel. Não convenceram o governo de que
descendem de judeus, já que o processo, baseado sobretudo em entrevistas
e na história oral, tem alguma subjetividade.
Outra dificuldade é preparar pessoas que vêm de vilarejos de um dos
países mais pobres do mundo (173º no ranking de desenvolvimento humano
da ONU) e vão para um dos mais industrializados (16º nessa mesma lista).
Enquanto esperam, os "falash" recebem assistência médica numa clínica do
governo e uma cota de 25 kg a 80 kg de farinha por mês, base do injera,
pão borrachudo que é o arroz-feijão do país.
PRECONCEITO
Muitos dizem que a migração será uma realização espiritual, um
reencontro com antepassados, mas poucos escondem que há interesses
materiais. "Minha irmã já foi para lá e me disse que a vida é melhor",
diz Abe Tesfaw, 29, que vive de bicos em Gonder.
São otimistas mesmo com a inevitável dificuldade de adaptação e o
preconceito que muitas vezes sofrem. Ao chegarem a Israel, os etíopes
passam de 12 a 18 meses em centros de adaptação.
Quando saem, teoricamente estão preparados para conseguir sobreviver de
forma autônoma. Mas têm taxa de desemprego de quase 20% (o triplo da
média do país) e poder aquisitivo um terço menor do que não etíopes.
"O Estado faz um esforço grande para integrar os etíopes, e há uma série
de casos individuais de sucesso. Mas como comunidade eles ficam abaixo
da média do país", diz o professor Kaplan.
Mesmo ainda aprendendo a serem judeus, muitos parecem genuinamente
interessados na nova fé. Ao final do evento na sinagoga de Gonder, o
grupo --homens de quipás coloridos de crochê, mulheres de longos
vestidos brancos-- acompanhou com fervor um culto. A maioria é habitué
do local. "Rezo todos os dias, como manda o Velho Testamento", diz
Tesfaw.
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/07/1310913-judeus-etiopes-se-preparam-para-migrar-para-israel.shtml
Nenhum comentário:
Postar um comentário